domingo, 25 de maio de 2014

Pirilampo (2) / Contos (2) / O caminho do arcano (1)





Li-Ming estava usando um de seus encantamentos favoritos, que gerava uma fina camada de geada ao seu redor. O gelo no ar derretia tão rápido quanto ela o criava, e assim, a olho nu, parecia que Li-Ming estava cercada por uma leve névoa. Ao descer do camelo ela não usou o estribo e foi baixando lentamente no ar como se correntes invisíveis a sustentassem, até tocar suavemente o chão. Aquilo atraiu a atenção de algumas pessoas que estavam na rua.

— Você tem que usar sua magia assim, de forma tão pouco discreta? — perguntei, irritado.

— O calor está insuportável, Mestre. Eu não sei como o senhor aguenta.

— Eu aguento porque é necessário — respondi enquanto descia do camelo. — Você não fará muitos amigos se comportando assim.

— Você só se preocupa com meu comportamento quando é conveniente me repreender.

— É culpa minha que isso aconteça com tanta frequência?

Embora protestasse, Li-Ming dissipou o feitiço ao se aproximar de mim. A leve umidade que a cercava sumiu imediatamente, absorvida pelo ar do deserto.

— Nós estamos aqui para observar e fazer algumas perguntas, nada mais — lembrei-lhe.

—Observar e fazer algumas perguntas. Nada mais — repetiu Li-Ming.

— Cuide dos camelos — ordenei, ignorando a provocação.

— Não era para observar?

— Depois de cuidar dos camelos — confirmei. — Vou encontrar Isendra.

— Isendra está aqui? — Li-Ming se animou.

— Sim, está. Mas fique aqui. E... Li-Ming...?

— Sim, Mestre? — ela perguntou, solícita.

— Tente não se meter em encrenca.

Li-Ming sorriu.

Protegida pela parede do cânion, Lut Bahadur ficava resguardada quando o vento escaldante soprava de oeste para leste, mas quando ele soprava de outra direção, a cidade ficava exposta. Havia sinais de que o povo tentara construir uma proteção contra o vento, mas esta ruíra há muito. Naquele dia o vento soprava do leste, mas não tão forte que tornasse perigoso ficar ao ar livre. Li-Ming amarrou os camelos perto do poço e olhou por sobre a beirada para o fundo. Eu não precisei olhar para saber que estava vazio. A água estaria estocada em jarros, embora provavelmente não restasse muita. Eu me dirigi até um dos homens sentados sob a sombra inútil de um toldo rasgado e perguntei onde eu poderia encontrar a feiticeira.

Subitamente a terra sacudiu, rolando feito ondas sob nossos pés, e então um tremor mais forte me jogou ao chão de terra batida. Quando olhei para cima, vi Li-Ming com os braços erguidos na altura dos ombros. Seus dedos se moviam como se ela manipulasse os fios de marionetes numa peça.

Tinha sido obra dela.

— Li-Ming! O que você fez? — gritei. O tremor continuava.

— Venha aqui e veja isso — Li-Ming respondeu, orgulhosa, apontando para o poço. Levantei-me e fui até ela, sentindo o chão tremendo sob meus pés. Quando me curvei sobre a borda do poço, vi o brilho fraco de água se infiltrando através da crosta seca no fundo. Li-Ming trouxera água, água de que a cidade precisaria para sobreviver.

— Eu encontrei água bem fundo, talvez um rio subterrâneo que escoa no Oásis de Dahlgur. Desviei o fluxo para encher o poço. A cidade...

— Já chega — interrompi, severo. — Eu disse que viemos aqui para observar e fazer algumas perguntas, nada mais.

— Nós podemos fazer mais, Mestre. Podemos construir um novo quebra-ventos ou consertar o que foi destruído pelas tempestades de areia. Você sempre diz que não devemos fazer nada. Mas por que nós temos essas habilidades, se não para ajudar os outros?Eu estive pensando, Mestre... talvez com nossa magia nós possamos reverter o calor e acabar com a estiagem.

— Nós não faremos coisa alguma. Não é o nosso papel. E você melhor do que ninguém deveria entender as consequências se nós tentássemos alterar o clima numa escala tão grande — repreendi. — Você já se esqueceu do seu erro?

— Eu não sou mais a menina que eu era. Eu aprendi. E nunca vou permitir o sofrimento dos outros! — devolveu Li-Ming.— Me diga por que não podemos ajudá-los. Me diga por que isso seria tão errado.

Apontei para o poço, agora cheio de água, e disse:

— De onde vem essa água? Para onde ela foi? Será que a água que chegava ao oásis virá até aqui sem nenhum efeito colateral? Não se pode criar a partir do nada. Você soluciona um problema e cria mais dez.

Li-Ming era jovem e não se preocupava com detalhes. Ela agia impulsivamente, e só via o que acontecia no momento.

— A água já estava ali, Mestre. As pessoas podiam ter cavado mais fundo por elas mesmas. Eu só facilitei.

—Seu altruísmo lhe faz grande honra, Li-Ming, mas nós, magos, não podemos fazer isso. Sim, às vezes é possível usar magia para ajudar as pessoas, mas não toda vez, e antes de agirmos é necessário considerarmos cuidadosamente os custos envolvidos. Isso não está aberto a discussão. Você vai me ouvir.

— Mas Li-Ming está certa — respondeu uma voz de mulher.

— Isendra! — exclamou Li-Ming, correndo na direção da feiticeira, que a abraçou com carinho.

— Este problema não nos diz respeito, nem a você — retruquei. — Li-Ming, deixe-me falar com Isendra. A sós.

Li-Ming franziu a testa e abriu a boca para falar, mas se conteve. Ela nos deixou e se uniu aos homens e mulheres que estavam indo buscar água no poço, carregando jarros e outros vasilhames. Fiquei olhando enquanto ela se afastava.

— Se esse problema não nos diz respeito, então por que estamos aqui? — perguntou Isendra.

— Às vezes você e ela ficam parecidas demais — resmunguei. — Ela me disse a mesma coisa.

— E como ela está?

— Não mudou muito com os anos. Continua tão impetuosa quanto no dia em que a conhecemos. Me pergunto se fizemos bem ao ensiná-la.

— Ela não se contenta em deixar as coisas como estão. Ela quer melhorar a vida das pessoas.

— Ela não pensa nas consequências. Ela vive no aqui e agora, mas eu e você sabemos que é necessário ter muito mais em mente. Esse é o nosso fardo, liderar os clãs de magos.

— Li-Ming pode bem estar certa. Nós três somos os magos mais poderosos de hoje. Unindo nossos poderes, por que não acabar com este verão e restaurar a ordem normal das estações, não acha?

— Esse pensamento tem origem nas emoções, não na razão — argumentei. —Nós não podemos alterar o clima. Não vai funcionar.

— Li-Ming jamais diria isso — retrucou Isendra.

— Você não é Li-Ming. Ela é uma menina tola.

— Você vê uma menina. Eu vejo uma mulher que pode salvar este mundo.

— Profecia. Destino. — Dei de ombros. — Quem sabe o que o dia de amanhã trará? Se isso vier a acontecer, você e eu enfrentaremos a situação e talvez Li-Ming lute ao nosso lado. Mas ela não é a única que pode. E como vamos saber se as profecias são verdadeiras? Os Lordes do Inferno deveriam ter atacado há vinte anos. Nosso maior medo deve ser o medo de nós mesmos.

— Você se tornou um homem medroso depois de velho — desafiou Isendra.

— E você ficou descuidada. Você não irá interferir.

— Farei o que eu preciso fazer — replicou Isendra, se retirando. — Assim como você.

Depois que Isendra saiu, fiquei observando Li-Ming. Ela estava ajudando um menino que desmaiara de calor. Ele estava febril. Suas bochechas estavam vermelhas e suor porejava em sua pele. Li-Ming lançou um feitiço e o ar em volta de suas mãos esfriou. Quando ela levou as mãos para perto do rosto do menino, ele suspirou pacificamente enquanto uma leve brisa soprava os cachos de cabelo grudados em sua testa.

— Obrigada — disse a mãe do garoto. — Andam falando de você. Mas você restaurou nosso poço e salvou meu filho... Isso não me parece errado.

Li-Ming sorriu e se levantou, mas quando chegou perto de mim sua expressão estava séria.

— Essas pessoas vão morrer — disse a jovem.

— Pode ser. Mas nossa interferência talvez não impeça isso.

— Nós jamais saberemos, não é? — Li-Ming protestou, seus olhos castanhos buscando os meus. — Você verá os rostos deles em seus sonhos?

— Deles e de muitos outros. Esta é a nossa maldição, Li-Ming, e você vai aprender isso dolorosamente. — Coloquei minha mão gentilmente em seu ombro. — Vamos embora.

Eu sei que já contei essa história da última vez em que conversamos, mas omiti o papel de Li-Ming nela, pois então era Isendra quem me preocupava na época. Você sem dúvida concordará que minhas ações foram corretas, mas eu não sou um monstro. Como sempre quando forçado a encarar essas situações, eu sentia grande tristeza por não poder agir como Li-Ming gostaria e ajudar o povo de Lut Bahadur. Era uma discussão frequente em nossas vidas. Eu simpatizava com as ideias dela mais do que ela imaginava.

Pouco tempo depois você e eu nos conhecemos, pois eu me preocupava com Isendra e as decisões que ela tomaria. Em meu coração eu tinha certeza de que o assunto não estava encerrado.

Suspeito que você saiba um pouco do que aconteceu em seguida, detalhes que eu não conheço. Foi aí, eu acho, que Li-Ming começou a considerar a decisão que nos levaria ao desastre.

Meses depois, em uma hora perdida da noite, minha porta se abriu e Li-Ming entrou. Ela não costumava bater, uma peculiaridade de sua personalidade com que eu tive que me acostumar. Ela me visitava cada vez mais raramente. Li-Ming parecia ter acordado às pressas. Seu traje, normalmente impecável, parecia ter sido vestido às pressas, e eu vi na furtividade dos seus olhos que algo a preocupava.

— Você está sentindo? — ela perguntou.

— Não sinto nada.

— Um feitiço poderoso foi lançado a leste daqui. Não muito longe. Precisamos ir. Algo aconteceu.

— Podemos ir pela manhã — contestei.

— Você precisa tanto assim de descanso, vovô? — Li-Ming falou com irritação, e então ficou séria. — Foi Isendra, Mestre.

Fiquei em silêncio, pois não sabia o que dizer. Mas cedi.

Saímos do Santuário Yshari e partimos em direção a Lut Bahadur. Era para estarmos no inverno, o terceiro inverno desde que o verão interminável começara, e o ar da noite estava tão seco e quente como ao meio-dia. Apenas a ausência do sol nos dava um pequeno conforto. Parecia que estávamos perto de um forno de vidraceiro. O suor escorria pelo meu corpo, e minhas vestes grudavam na minha pele.

Li-Ming não falou nada enquanto seguíamos.

Lut Bahadur estava quieta quando chegamos. Mesmo àquela hora o vento soprava areia pelo deserto, e o único outro som que se ouvia era o leve bater das roupas estendidas em varais perto de cada cabana. Ninguém andava pelas ruas, embora os lampiões ainda estivesse acesos.Masmeus pensamentos se ocupavam de outra coisa.

O ar estava frio.

Um arrepio correu entre meus ombros e por meus braços enquanto entrávamos na cidade. O vento frio roçava meu corpo e, depois de tanto tempo suportando o calor, meu corpo parecia rejeitar a sensação. Mas aos poucos eu senti meus músculos relaxando como se a tensão causada pelo calor interminávelestivesse se desfazendo com a carícia suave da brisa fresca.

Li-Ming evocou orbes de luz e os despachou pela cidade. Ao desaparecerem de vista, a luz bruxuleante iluminava o chão e os lados dos prédios pelos quais passavam. Aquilo era algo novo. Eu não conhecia esse feitiço.

— O que foi aquilo? — indaguei.

Li-Ming ignorou minha pergunta e disse:

— Você está sentindo o ar?

— Está frio.

— Não, não isso — corrigiu Li-Ming. — Há eletricidade no ar. Eu nunca senti isso assim tão forte, e por isso não sabia dizer se a causa era um feitiço ou alguma outra coisa.

Li-Ming falou e calou-se, e eu senti a preocupação que emanava da minha estudante.

Eu a segui enquanto ela avançava decididamente por ruas sinuosas, virando em certos pontos. Era tarde da noite, mas ainda assim estava quieto demais. Os toldos de lona se enfunavam sem produzir som, enquanto o vento enfraquecia. Não havia som além dos nossos passos contra a terra batida. Eu ouvia as batidas de meu coração ansioso. Caminhamos por entre as ruas abandonadas até que ela finalmente se aproximou da porta de uma casa e a abriu.

— O que você está fazendo? — sussurrei, entrando logo atrás de Li-Ming, consciente do barulho de minhas botas no chão.

Eu abri a boca para repreendê-la e estendi a mão para tocar seu ombro, mas as palavras morreram em minha boca e minha mão parou. Dentro da casa, parecia que o tempo havia parado de correr. Um homem, uma mulher e uma criança estavam sentados ao redor de uma grande mesa, mas não perceberam nossa intrusão. Estavam frios e rígidos feito estátuas. Os lábios da mulher se abriam para pronunciar uma palavra que jamais fora dita. Ao lado dela, o homem se voltava para encarar a criança, que estendia o braço sobre a mesa. A comida parecia ter sido preparada e servida há pouco tempo, mas não havia calor. Era como se a luz do luar tivesse sugado toda a cor e o calor da cena diante de mim.

— O que aconteceu aqui? — perguntei em voz baixa.

— Eu não sei com certeza — respondeu Li-Ming enquanto andava pelo cômodo, seus olhos vendo sem ver, seguindo os rastros invisíveis de energias arcanas que eu não conseguia discernir. — A forma do feitiço desaparece com o tempo. É como tentar apreender o tamanho de uma tempestade depois que ela acabou, usando apenas as poças no chão e as nuvens restantes no céu.

Saí, sem esperar enxergar algo que eu não via, e aguardei Li-Ming do lado de fora. Alguns minutos depois, ela retornou.

— Ela tentou roubar o calor do ar para esfriá-lo, mas o feitiço fugiu ao controle. O frio irrompeu e o ar congelou.

— Ela? — perguntei, embora eu já soubesse a resposta.

— Isendra. Eu reconheço o padrão da magia dela, assim como conheço o seu. E não há muitos magos que poderiam ter tentado executar o feitiço que foi lançado aqui.

— Como isso aconteceu?

— Ela não foi forte o suficiente. No início estava indo bem, mas quando o feitiço se tornou mais forte, sua estrutura enfraqueceu e se desfez. — A voz de Li-Ming falseou. — A culpa é minha.

— Isendra pode estar precisando de nós. — Temos que encontrá-la.

Li-Ming lançou as esferas de luz para nos ajudar em nossa busca. E em todas as casas a mesma cena nos recebeu: todos os moradores congelados como estátuas em um estranho museu, como em um cemitério silencioso. E não havia sinal de Isendra.

Uma hora se passou até que a encontrássemos. A cabana se parecia com as outras, mas Li-Ming tinha certeza de que Isendra estaria lá dentro. A jovem feiticeira parou por um momento antes de empurrar a porta de ripas. Eu a segui.

Por dentro, a cabana revelava-se diferente. Enquanto as outras permaneciam numa quietude inquietante, nesta eram claros os sinais de uma luta violenta. Havia grandes manchas negras nas paredes onde os tijolos de barro foram calcinados por fogo. As mesas, cadeiras e outros móveis haviam sido queimados e derrubados, e havia um forte cheiro de cinzas no ar. Ali eu consegui sentir alguma coisa, mas não as evidências de magia que Li-Ming percebia. Era uma reação primitiva e instintiva que fez os pelos do meu braço se arrepiarem. Então vi aquilo que eu temia: Isendra, caída desajeitadamente como uma boneca jogada fora. Sanguese acumulava em poças no chão de madeira, escorrendo das feridas nos braços e estômago. A pele estava enegrecida, e a cabeça virada para um lado, os olhos vagos encarando as tábuas do chão.

Li-Ming correu até Isendra e se ajoelhou ao seu lado. Ela acolheu o corpo sem vida da feiticeira em seus braços enquanto lágrimas escorriam por seu rosto.

— O que aconteceu aqui, Mestre? — Li-Ming perguntou.

Eu sacudi a cabeça. Nós permanecemos lamentando em silêncio por algum tempo. Então Li-Ming soltou delicadamente o corpo de Isendra e se levantou.

— Nem todo esse fogo foi criado com magia — afirmou. — A magia do feitiço de Isendra já está se dissipando, mas há um traço mais recente. Isto aconteceu depois.

— Quando um mago perde o controle de um feitiço os resultados podem ser caóticos — observei. — Eu já testemunhei isso várias vezes.

— Ela não foi morta por magia, Mestre.

— Talvez não, mas a magia fez com que isto acontecesse. A cidade foi destruída e Isendra morreu. Quem ela conseguiu proteger? Quem ela conseguiu salvar? Me responda! — Minha voz soava alta em meio ao silêncio inquietante.

— Você está cego! — gritou Li-Ming, raivosa. —Isendra tentou ajudá-los. Isso é mais do que você jamais fez. Eu não vou ficar só olhando e assistindo as pessoas sofrerem. Nunca mais , principalmente agora que chegou a época em que o mundo precisa de mim.

— E as pessoas irão pagar com as próprias vidas pelo seu fracasso, da mesma forma que esta cidade pagou pelo fracasso de Isendra? Você irá sacrificar inocentes por suas noções infantis de heroísmo?

— Não — respondeu Li-Ming calmamente.

Por um momento minha aluna brilhante pareceu novamente uma menina. Olhei com tristeza para a silhueta tombada de minha amiga, que já nãoparecia a pessoa com quem convivi por tantos anos, e me calei.

Quando chegou a hora de partir, Li-Ming ateou fogo à cabana com um feitiço. Isendra, sua antiga mestra, ficou repousando pacificamente no chão, de olhos fechados. O dever de Isendra fora cumprido. Enquanto o fogo aumentava e as chamas se erguiam, águabrotava e escorria por seu rosto feito lágrimas. Guiei Li-Ming para longe da casa pelo braço.

Os olhos de Li-Ming encontraram os meus. A mágoa e a raiva ainda estavam ali, mas o que eu mais me chamou a atenção foi uma determinação sinistra:

— Mas eu não vou fracassar.


Nós atravessamos a cidade silenciosa, perdidos em nossos próprios pensamentos. Saber o que cada casa escondia me deixava inquieto. Olhei para trás para observar Lut Bahadur enquanto nos afastávamos, as estradas iluminadas pela luz de mil lampiões bruxuleantes que sumiam na noite como um enxame de pirilampos.

quarta-feira, 21 de maio de 2014

Pirilampo (1) / Contos(1)



Pirilampo (por Michiael Chu)


Eu peço seu perdão, pois há muito o que falar sobre a arcanista, e eu sou o único que pode contar toda a sua história. Este é meu fardo, bem como o que me aguarda depois. O final não é um grande mistério. Está escrito nas pedras estilhaçadas e paredes esfaceladas ao nosso redor e é sussurrado nos boatos que saem de todas as bocas.

Mas, quando o assunto é magia, nada é tão simples, e esteja certo de que o que você viu e ouviu não é toda a história.

Enquanto eu convalescia em minha cama, após os médicos descartarem risco de vida, eu não tinha nada para fazer além de revisitar as lembranças distantes dos dias antigos, em busca do padrão que prenunciasse esta grande catástrofe. Eu a conheço melhor do que qualquer um, melhor do que ela própria, embora ela jamais vá admitir isso. Ela pode muito bem ser a mais poderosa arcanista de nossa era. Seu coração é puro e ela não quer nada além de fazer o bem, mas ainda é tola às vezes e se crê invencível. Erros da juventude e da genialidade. Não há regra que ela não quebre, e ela jamais entendeu o significado das palavras "não pode" e "não deve". Foi assim desde que nos conhecemos, há tantos anos.

Em um dia parecido com este.

Isendra, a feiticeira, veio até meus aposentos trazendo uma jovem à sua frente. As duas eram tão diferentes quanto fogo e gelo. Isendra tinha uma aparência régia e resplandecente, vestida numa bela túnica verde, coberta de joias de ouro, enquanto a jovem parecia um pássaro amedrontado e curioso com a cabeça indo de um lado a outro e os olhos disparando por toda parte, fascinados pelos objetos em volta: os livros nas prateleiras, as fileiras de frascos cheios de líquidos e pós estranhos e os instrumentos arcanos cujo uso era um mistério para mim. A túnica da jovem não passava de trapos rotos e manchados de suor e poeira. Ela passaria facilmente por uma das crianças de rua que atormentavam os mercadores ricos no bazar de Caldeum. Seus cabelos negros eram um ninho de passarinho, embaraçados e quebradiços, empastados de lama e pó como o resto. Sua pele estava queimada de sol e seus lábios estavam rachados e descascando.

— Então esta é a garota? — perguntei a Isendra, olhando para a criança andrajosa diante dela.

Isendra olhou para a garota, hesitante.

— Eu a encontrei no pátio duelando com Mattiz, Allern e Taliya.— A voz da feiticeira evidenciava irritação.— Eles estavam ansiosos para aceitar o desafio.

— Ela não parece machucada — respondi. — E quanto aos outros?

— Mattiz e Allern estão sendo atendidos pelos médicos. Taliya machucou somente o orgulho próprio.

A menina sorriu ao ouvir aquilo.

— Talvez tenha sido melhor assim — observei. — Aqueles três bem merecem uma lição de humildade. Falarei com eles mais tarde.

— Mas você vai falar comigo agora, vovô — disse a menina. Ela tinha uma voz forte de comando, amplificada pela coragem nascida da confiança infantil.

— Ela fala! — comentei e sorri para Isendra.

— Ah, fala — disse Isendra, secamente. — E bastante.

— Quem é você? — perguntou a menina. — Por que você me trouxe aqui?

— Eu sou Valthek, alto conselheiro dos Vizjerei e mestre dos clãs de magos do Santuário Yshari.

A menina ficou em silêncio por um bom tempo, me observando.

— Você? — ela perguntou por fim.

Eu ri.

— Diga-me, menina, quem é você e por que você veio? Com certeza você ambiciona algo mais do que mandar meus aprendizes para a enfermaria.

— Meu nome é Li-Ming. E eu não sou uma menina. Eu sou uma arcanista.

— Eis aí uma declaração ousada — ironizei. Tive que me esforçar para conter o riso ao ouvir a menina usar o título de "arcanista", reservado apenas aos magos mais famosos da história, sempre citados pelo povo e pelos conhecedores das artes arcanas com medo e pavor.

— Não são só palavras — retrucou Li-Ming, com um tom sinistro.

Ergui a mão para acalmá-la e disse:

— Então me mostre.

Eu mal acabara de falar quando um forte sopro de vento cruzou a minha mesa, espalhando todos os papéis, livros e tinteiros e derrubando tudo no chão em um monte desordenado. Minha expressão permaneceu neutra, e foi interpretada pela menina como um pedido de bis. Li-Ming abriu os braços e criou duas bolas de fogo na palma das mãos. O fogo se insuflou até o teto, a explosão de ar quente soprou seus cabelos em desalinho, e as chamas refletiram naqueles olhos castanhos.

Eu dei de ombros, dizendo:

— Um mero truque de palco.

Li-Ming rilhou os dentes, frustrada. Fechou as mãos e as chamas desapareceram, embora o calor persistisse. Com outro movimento do braço, serpentinas incandescentes, vermelhas e cor de laranja, ganharam vida e dançaramem cima de minha mesa. A jovem moveu o braço novamente e fileiras de livros saíram das prateleiras e ficaram suspensos no ar. Ela os fez flutuar numa fila pela sala e eles a cercaram girando como se capturados por um redemoinho. Então, empilhou os livros um a um, no formato de um trono, sentou-se nele e me encarou.

A novata ergueu uma sobrancelha e eu respondi com um aplauso comedido.

— Isso é o melhor que você pode fazer, menina? — perguntei. Movi a mão displicentemente e as chamas em minha mesa se apagaram. Os livros em que ela se sentava caíram no chão, desordenados. Li-Ming se levantou com um pulo e evitoucair junto com o trono. — As pessoas temiam os magos chamados arcanistas. Eles deixaram o mundo à beira da destruição muitas vezes, e seu imenso poder incontido fazia a terra tremer com seus planos. Eles se associavam com demônios do Inferno Ardente e faziam pactos para condenar todos nós. Trapaceavam a morte e destruíam o próprio tecido da realidade. Você bagunçou os objetos de um velho e ateou fogo numa mesa.

— Eu consigo fazer mais — argumentou ela, defensivamente.— Um dia eu vou ser a maior arcanista do mundo.

— Pela minha experiência, é possível esperar um longo tempo por esse dia e ainda se desapontar quando ele finalmente chega.

— O senhor ouviu falar do milagre do Vale do Rio das Garças?

— Eu ouvi falar dessa história. Algo sobre uma seca, e uma jovem que tentou melhorar as coisas — respondi distraidamente. — Parece que chamaram essa menina de arcanista.

— Essa arcanista sou eu — orgulhou-se Li-Ming. — Fazia meses que não chovia e o Rio das Garçastinha secado quase completamente. Os campos tinham secado. O povo do vale achava que não havia nada a fazer a não ser esperar que os deuses nos salvassem. Mas eu sabia que podia fazer o que os deuses não podiam.

— É mais prudente não falar dos deuses tão levianamente. Você verá.

Li-Ming ignorou meu comentário e continuou:

— Eu procurei por toda parte. Coletei água de poços no fundo da terra e dos últimos fiapos de água que restavam em leitos de rio rachados. Juntei toda a água que consegui e a lancei ao vento para criar uma tempestade. Nada aconteceu a princípio, e as pessoas me chamaram de tola por ficar agitando os braços e orando por chuva. Mas eu sabia. As horas se passaram e o céu escureceu. Nuvens cinzas diáfanas apareceram, preenchendo o horizonte e aumentando de tamanho até obscurecer o sol completamente. As nuvens pesadas de chuva ficaram da cor da noite, e suas sombras se espalhavam pelos vales. Os que tinham rido começaram a acreditar. O som de trovão ecoou de todas as direções e clarões de luz acenderam as nuvens por dentro. O ar ficou úmido e eu senti o frescor na pele. A névoa desceu das montanhas e tornou-se garoa, a garoa tornou-se chuva, que se tornou um aguaceiro. A terra bebeu tudo e o Rio das Garças voltou a fluir. Isso é o que eu posso fazer.

Isendra parecia incrédula. Ela disse:

— Nenhuma criança conseguiria fazer isso.

— Só porque você não consegue não quer dizer que eu não consiga — disse Li-Ming à feiticeira, duas décadas mais velha.

— Eu também não acreditei, a princípio — expliquei a Isendra. — Mas ouvi as histórias a respeito. Aconteceu exatamente assim. Exceto por alguns detalhes que ela não mencionou.

O sorriso desapareceu do rosto de Li-Ming, embora seu queixo ainda estivesse erguido em desafio. Insisti:

— Depois que a chuva veio e passou, a seca voltou nos meses seguintes, pior do que antes. As pessoas apontaram os dedos para a arcanista que havia trazido a chuva e a culparam de tudo.

Com a voz suave, Li-Ming explicou:

— Os que tinham me louvado exigiram que eu fosse expulsa. Meu pai e minha mãe concordaram. Eu só queria ajudar. Não sabia o que iria acontecer.

— As pessoas não confiam em magos. Elas temem o que não compreendem. Qualquer mago treinado no Santuário Yshari saberia dos perigos envolvidos no que você tentou fazer. — Ofereci um sorriso à menina e continuei.— E devo dizer... se eles tivessem tentado a mesma coisa, não creio que teriam conseguido nem metade do que você fez.

Li-Ming percebeu minha mudança de atitude e pediu:

— Então me ensine.

— Eu considerei isso. Mas agora que a conheci, não tenho certeza se você tem o que é preciso para estudar aqui. Você tem muito a aprender, mais ainda a desaprender, e não sei se você tem força de vontade para ir até o fim.

— Você não sabe o que diz! Eu sou mais forte que os seus aprendizes. Traga todos aqui e eu vou lhe mostrar! Eu enfrento até você se for preciso, vovô. Não importa. Atravessei mar e deserto para estudar aqui, e eu vou.

— A decisão não é sua. É minha — afirmei.

— Deixe-me ensiná-la — Isendra interrompeu abruptamente.

— O quê? — indaguei.

Li-Ming olhou desconfiada para a feiticeira.

— Tem algo diferente nessa menina. Como você disse, pode não dar em nada, mas eu e você vemos potencial nela. Pode acontecer, um dia, de nós precisarmos dela, e então nos arrependeremos de tê-la mandado embora. — Isendra sorriu. — E talvez eu veja um pouco de mim nela.

Li-Ming sacudiu a cabeça e reclamou:

— Eu não quero você. Quero que o vovô ali me ensine.

Isendra franziu a testa.

— Você devia estar feliz. Eu lutei contra os Senhores do Inferno quando você não passava de um brilho no olho do seu pai. E não fiz isso para acabar ensinando magia a uma criança mal-educada, mas eis a minha oferta.

— E minha resposta é não — desdenhou Li-Ming.

Eu fiquei em silêncio enquanto considerava se devia permitir tal parceria. Isendra não tinha páreo em suas habilidades e era quase como eu. Toda a sua experiência com certeza fascinaria a menina e prenderia sua atenção. Mas eu tinha algumas preocupações.

— Quietas, as duas — exclamei ao me levantar. — O conhecimento de Isendra sobre magia elemental rivaliza com o meu, e creio que vocês descobrirão que têm muito em comum. Não poderia haver melhor professora. Se eu fosse você, rezaria para que Isendra não reconsidere a oferta. Aceite-a, ou então vamos ver como você se sai sozinha. A história está cheia de arcanistas esquecidos que nunca deram em nada.

Li-Ming mordeu o lábio e resmungou:

— Eu não posso opinar?

— Não — respondi. — Não pode, não.

Aquele foi nosso primeiro encontro, e eu ainda me lembro bem de tudo. Isendra dedicou-se ao papel e tornou-se mentora de Li-Ming, que, por sua vez, adquiriu um profundo respeito pela mestra. Elas eram mais parecidas do que Isendra ou eu suspeitávamos. Mas Li-Ming logo exauriu o conhecimento da mentora. O relacionamento delas mudou e Li-Ming passou a tratar a feiticeira mais como uma igual do que como uma professora. Isendra também estava mudando, e isso me preocupava. Ela era muito permissiva com o comportamento da jovem. Sem ter o que aprender, Li-Ming seguiu a curiosidade natural que sempre a instigara, e então os problemas começaram.

Quando surpreendi Li-Ming fuçando as prateleiras da biblioteca que abrigavam textos proibidos, considerados perigosos demais para estudo, percebi que precisava agir. Assumi o treinamento de Li-Ming apesar dos protestos de Isendra e passei a vigiá-la de perto. Tentei estruturar e disciplinar a vida de Li-Ming e apresentar a ela uma linha de estudos que levaria seus interesses para áreas mais aceitáveis.

Sem a responsabilidade de ensinar Li-Ming, Isendra já não tinha muito o que a prendesse no Santuário Yshari e agora passava poucos dias ali. No entanto ela permaneceu uma grande amiga, e seus conselhos sempre foram valiosos. Quando nós três nos reencontramos muitos anos mais tarde, Isendra havia começado uma nova vida longe do Santuário e de sua antiga estudante.

Eu gostaria de poder contar com sua sabedoria agora.

O verão deveria ter dado lugar aos dias frios de outono e inverno, como é a ordem natural das coisas, mas depois de um ano o calor sufocante continuava desde os confins do império ao sul até as Estepes Áridas ao norte. Ainda era o começo do reino do Imperador Hakan II, e os supersticiosos falavam sobre aquilo ser um mau presságio para o governo. Mesmo no deserto o clima piorou de forma nunca vista. O calor implacável cobria tudo. Tempestades de areia e redemoinhos grassavam pelos ermos escaldantes. Os Mares de Areia faziam jus ao nome. As dunas se moviam criando um cenário inconstante, desencavando enormes protuberâncias de pedra com bordas afiadas o suficiente para rasgar carne e osso como dentes monstruosos se erguendo da areia quese tornara vermelha como se tingida de sangue. O deserto engoliu vilarejos inteiros, deixando apenas alicerces nus de pedra ou algumas paredes de lama onde antes havia casas.

Mais um ano se passou e o verão não dava sinais de acabar. O império secou. Mandei uma mensagem para Isendra, pedindo que ela investigasse possíveis causas para aquele clima. Saí de Caldeum e fui para o coração do deserto junto com Li-Ming para tentar descobrir alguma pista.

Vários meses se passaram, mas estávamos voltando para casa com mais perguntas do que respostas. Li-Ming e eu viajávamos de camelo, e um dia Lut Bahadur lentamente apareceu no horizonte. Era uma das maiores cidades das Fronteiras, em um trecho de deserto onde a vida era possível, embora não fosse fácil. O calor parecia algo vivo, se enterrava bem fundo sob nossa pele, eliminava qualquer lembrança do frio. Eu usava vestes leves de algodão com um capuz e protegia o rosto das tempestades de areia com um lenço de pano que deixava meus olhos descobertos. Li-Ming já havia se tornado uma jovem mulher então. Os traços de inocência infantil tinham-se apagado e ela agora possuía uma expressão séria que dava lugar, às vezes, a um sorriso insolente bem ensaiado. Li-Ming usava suas melhores roupas, apesar do calor, usando magia para suportar o incômodo.

— O fim de nossa busca se aproxima, Li-Ming, e no entanto não estamos nem um pouco mais perto de resolver o mistério desse verão sem fim — eu disse, enquanto seguíamos.

— Eu não sei explicar, Mestre. Creio que algo está consumindo o deserto. Parece que os limites da realidade estão enfraquecidos, como quando olhamos à distância em um sonho.

— Talvez você apenas esteja sentindo o oceano de fogo e rocha derretida sob nossos pés."

— Como o sol acima de nossas cabeças? — perguntou, desafiadora. — Você não me leva a sério, mas estou certa de que esse clima não tem origem natural. Quando eu vasculhei os arquivos da cidade...

— Um feito interessante considerando que é proibido sair do Santuário Yshari.

Li-Ming me devolveu um olhar seco e continuou:

— Eu examinei os registros do tempo. Nós nunca passamos por um período tão intenso de calor. O Oásis de Dahlgur pode secar se isso não acabar logo.

— Nisto concordamos.

— Mas há mais — continuou Li-Ming. — Há algo no ar que não se parece com nada que eu já tenha sentido. Era para estar frio e não está... Os ventos deveriam estar calmos e não estão.

— Será possível que você ainda insista em procurar uma explicação onde não há nenhuma? Sabemos muito deste mundo e das estrelas sobre nós, mas no final isto pode muito bem ser tão natural quanto as eras de gelo e neve. Você não viveu tanto quanto eu, e os mistérios do universo devem parecer novos a você.

— Se você acredita nisso, então por que estamos aqui, Mestre?

— Você me pegou nessa — respondi, rindo.

Li-Ming olhou em direção à cidade.

— Há uma forte magia em nosso mundo. Por exemplo, as Terras do Pavor. Um lugar inteiro destruído, e quem pode dizer se a destruição de lá não começou da mesma forma? Já faz vinte anos desde que os Lordes do Inferno caminharam por nosso mundo. Isendra me contou sobre a invasão fracassada. Talvez eles estejam tentando outra vez.

— Às vezes eu penso que você é tão ávida por cumprir o seu destino que chegaria a agradecer se alguma calamidade se abatesse sobre nosso mundo.

— É o meu destino, afinal de contas. E ele se concretizará mais cedo do que você pensa.

Essa era a opinião de Li-Ming, e Isendra partilhava dela. Li-Ming acreditava que um dia iria deter uma invasão do inferno como Isendra fizera antes dela. Tudo por causa de um livro que Li-Ming lera, uma profecia escondida em um dos volumes da biblioteca que detalhava os sinais do retorno dos Lordes do Inferno. Isendra várias vezes tentara me convencer de que a profecia era verdadeira, e embora eu não ignorasse o perigo, permaneci cético.

Li-Ming tinha muitos talentos, mas o maior deles era a leitura da magia. Ela era muito observadora e sabia discernir com facilidade a estrutura oculta dos feitiços. Uma vez eu lhe perguntei como era enxergar as coisas. Ela descreveu os fios invisíveis da magia e as auras de poder arcano que se formavam ao redor dos magos quando eles lançavam seus feitiços, e descreveu os borrões verdes e vermelhos que ficavam no ar, como os que se gravam na retina quando olhamos para o Sol. Ela sentia o gosto, o cheiro, via e sentia a magia. Assim, quando Li-Ming me disse que o verão sem fim era causado por mão mortal ou algum outro grande poder, eu fiquei propenso a acreditar nela, pois esta também era minha opinião. Mas não falei coisa alguma, pois se aquilo fosse verdade, as consequências seriam muito preocupantes.

Caldeum ficava em uma extensa chapada que se erguia sobre o deserto. A chapada terminava em penhascos íngremes, em cuja base ficava Lut Bahadur. Acima das muralhas da cidade, moinhos giravam placidamente, em épocas normais, mas agora muitos deles haviam sido derrubados e inutilizados pelos ventos fortes. Toldos de lona desbotados e rasgados se estendiam sobre ripas de madeira que se projetavam dos telhados de barro para oferecer alguma proteção contra o Sol, mas de pouco adiantava, pois a sombra não oferecia alívio. Quase todos agora usavam panos escondendo o rosto como eu, então não se podia ver nada além da expressão dos olhos, cheios de medo ou esvaziados de esperança.

A cidade estava morrendo.

(...)