terça-feira, 10 de junho de 2014

Pirilampo (3) / Contos (3) / O que que a baiana tem (1)






Creio que, naquele momento, Li-Ming começou a entender o perigo de suas ações e o que o fracasso poderia causar. Nós não falamos novamente da morte de Isendra até a última vez em que a vi. Será que Li-Ming sabia por que Isendra morreu? Sabia como ela foi morta?

Os acontecimentos de Lut Bahadur não arrefeceram nem um pouco o desejo de Li-Ming por conhecimento. Ela ficou obcecada em aprender mais e ter sucesso onde Isendra falhara. Ela passava horas na biblioteca e sempre conseguia entrar onde era proibido. Apesar dos meus esforços, era impossível contê-la. Ela aprendeu magia temporal a partir dos escritos de magos que estenderam seus tempos de vida bem além dos homens normais e leu a respeito de outros que tinham ficado tão poderosos a ponto de iludir a morte, magos como o enlouquecido Zoltun Kell, que substituiu seu sangue pelas areias do tempo e não podia ser morto, apenas aprisionado. Tendo aprendido sobre a teia invisível de poder arcano, Li-Ming dominou a habilidade de se projetar de um lugar a outro com magia de teleportação. Dominou a arte de forjar ilusões vivas e assim criar duas imagens perfeitas de si mesma que imitavam suas ações. Ela leu pergaminhos e interpretou diagramas que ensinavam a desafiar e dobrar as forças invisíveis do universo. Seu poder aumentou muito, assim como minha preocupação.

Da primeira vez que nos encontramos, eu pedi a você que ficasse de olho em Isendra apenas por medo de que ela tentasse alguma loucura. Não questiono a decisão que você tomou.

Um pouco depois disso, Li-Ming fez sua própria escolha.

O teto em abóbada do enorme salão octogonal do Santuário Yshari era pintado com cenas da história dos clãs de magos. Oito portas abriam-se para saguões e outras câmaras, nenhum tão grande quanto o salão principal. Cada centímetro das paredes era coberto por tapeçarias espetaculares, e as lajes do chão vinham das pedreiras além dos Mares Gêmeos.

Quando eu entrei, Li-Ming estava no centro da sala, observando os padrões no assoalho. O salão estava vazio, exceto por nossa presença.

— Eu não queria ir embora sem avisar — começou Li-Ming, ao ouvir meus passos. — Acho que devo isso a você.

— E para onde você está indo? — perguntei.

— Uma estrela cadente atravessou os céus hoje caiu a oeste. Este é o sinal por que eu estava esperando. Você leu os mesmos livros proféticos que eu. Você sabe o que isso significa. Nós esperamos a invasão do inferno há vinte anos, mas ela nunca aconteceu. As histórias e as notícias sinistras que tenho ouvido no bazar me deixaram certa disso. Minha hora chegou.

— O seu lugar é aqui, como estudante do Santuário Yshari. Você é uma fagulha, e nosso mundo está seco e propenso a incêndios. Você não consegue se controlar, e se eu deixar que você parta, o que você pode causar será pior do que qualquer catástrofe que eu possa imaginar.

— Já não tenho mais nada a aprender com você.

— Você se lembra do dia em que nos conhecemos, Li-Ming? Hoje você sabe muito mais do que sabia então, mas você não ficou mais sábia. Se você partir, você será uma mera arcanista.

— Não preciso da sua sabedoria. Eu sou uma arcanista, e vou proteger o mundo, já que os magos não fazem nada! — Li-Ming me virou as costas.— Me deixe seguir meu destino. Você ficará a salvo aqui com seus livros e seus medos.

Ergui as mãos e, canalizando uma pequena quantidade de energia arcana, fiz com que todas as portas do Santuário se fechassem com estrondo. Uma a uma elas bateram até que ficamos presos no grande salão.

— Então eu tenho que deter você. — Enrolei cuidadosamente as mangas de minhas vestes. — Você foi minha melhor estudante, Li-Ming, e eu acreditei que, com o tempo, você poderia me suceder e liderar os clãs de magos. Achei que a aluna superaria o mestre. Lamento muito que as coisas tenham que acabar assim. Talvez o fracasso seja meu.

— Você foi um bom professor, Mestre. E eu aprendi suas lições. Mas você nunca entenderá a dádiva que nos foi dada. É por isso que eu o superarei — bradou Li-Ming, e suas palavras ecoaram pelo salão.

Eu vi os olhos de Li-Ming se estreitarem enquanto ela se concentrava. As tochas presas às paredes começaram a tremeluzir ao começarmos a drenar a energia à nossa volta. As mãos de Li-Ming se moveram para os lados do corpo e seus dedos se curvaram enquanto nos postávamos um diante do outro, imóveis feito rochas na correnteza de um rio. Abaixei meu cajado e o segurei à minha frente, usando-o para focalizar meu poder.

— Você já se perguntou, Mestre, se eu seria mais forte que você?

— Não — respondi sorrindo. — Nunca.

Esperei que Li-Ming agisse primeiro. Ela conjurou bolas de fogo que absorveram a luz das tochas e pareceram ofuscar a luminosidade de fora, mas isso foi apenas uma ilusão dos meus olhos se ajustando ao escuro. A jovem arremessou os orbes contra mim. Eu os repeli para o assoalho, onde eles explodiram, queimando o mármore, mas sem me atingir. O ar ficou incandescente e senti meu fôlego encurtar. Li-Ming olhava para mim com uma expressão divertida, mas já aprontava o próximo ataque. Derrubou grandes blocos de pedra do teto, incendiando-os e arremessando-os em minha direção. Ergui o cajado e liberei uma onda de força. O domo brilhante se expandiu e bloqueou os meteoros incandescentes, estilhaçando-os numa nuvem de pó e fragmentos que recobriram o chão. O escudo translúcido havia me protegido do ataque, mas a reverberação ecoava dolorosamente pelo meu corpo. Em minha juventude, eu mal teria sentido alguma coisa, mas naquele momento eu me prostrei de joelho ao chão. As lajes de mármore ao meu redor racharam com o choque, feito um espelho quebrado, e até Li-Ming cambaleou para trás.

— Você terá que fazer melhor que isso — desafiei.

Li-Ming grunhiu de frustração. Desta vez ela disparou fogo das palmas das mãos em finos feixes iridescentes que avançaram até mim, e tive que me esquivar para escapar. Quando os raios atingiram a parede, marcaram a pedra como a lâmina de uma faca. Os raios estraçalharam o piso de mármore e senti o chão começar a se despedaçar. Estendi os braços para diante, encontrando as pedras que ameaçavam se esfacelar e prendendo-as com fios invisíveis. Se as soltasse, o chão desabaria, e eu junto com ele. Sob o grande salão ficam as catacumbas, e eu não sobreviveria a uma queda daquela altura. O esforço de manter tudo suspenso era demasiado, e os nós de meus dedos ficaram brancos enquanto eu apertava meu cajado.

Li-Ming olhou para o meu lado do salão, onde o chão estava rachado e quebrado. Moveu a mão e a pedra sob meus pés desapareceu. Isendra me ensinara um truque há muito tempo e, lembrando-me dele na mesma hora, eu sumi e reapareci a alguns metros, onde havia apoio para meus pés. A agonia da teleportação, mesmo a tão curta distância, era imensa. Senti como se tivesse sido rasgado em milhares de pedaços e então costurado com linha incandescente. Era impossível saber o que doía mais. Li-Ming destruiu meu novo apoio e me teleportei outra vez. Repetimos essa dança por algum tempo, mas minhas reações ficavam mais lentas a cada vez, e eu sentia a batalha exigindo mais do que o meu velho e frágil corpo podia dar.

Bati com meu cajado no chão e o impacto soou como um trovão. Em um piscar de olhos, arcos de relâmpago faiscaram pelo salão. Onde eles pousavam, o chão explodia lançando estilhaços de mármore para o alto. O relâmpago explodiu com força percussiva e partiu em direção a Li-Ming. Mas sem acertá-la. As rebarbas retorcidas de luz congelaram no ar enquanto Li-Ming estendia os braços para diante, se concentrando intensamente. Sem me deixar deter, continuei a evocar o relâmpago, e a tempestade ficou mais e mais forte. O relâmpago se abatia sobre Li-Ming como um leque aberto até que ela não pôde mais contê-lo. A eletricidade se propagou através dela e a arremessou no chão, explodindo ao redor numa cascata de faíscas e luz branca.

Li-Ming desapareceu.

Sem saber das intenções dela, incendiei a tempestade, e a eletricidade explodiu em um inferno de chamas que preencheu todo o grande salão e chegou a calcinar minha carne, ameaçando exaurir o que me restava de força. Quando Li-Ming apareceu novamente, estava cercada pelas chamas. Ouvi seus gritos conforme o fogo a queimava. As lajes estremeciam sob meus pés enquanto eu me aproximava. Mantendo o feitiço que impedia o chão de desabar, apontei meu cajado para a silhueta enrugada da arcanista.

O piso pareceu sólido, e eu me postei diante de Li-Ming, aliviado por conseguir me apoiar no chão.

— Você ainda tem muito o que aprender, Li-Ming.

Tentei golpeá-la com meu cajado, mas não atingi coisa alguma: o corpo de Li-Ming havia se dissolvido no ar.

Eu me virei a tempo de vê-la atrás de mim. Abri a boca e tentei lançar um feitiço, qualquer feitiço, mas uma explosão me desconcentrou. Perdi o controle do encantamento e do chão partido a meus pés. O chão tremeu, se despedaçou e tudo desabou. Caí longamente nas trevas, até bater no chão de pedra fria das catacumbas.

Eu fiquei lá, sentindo meu corpo maltratado doer, e me vi cercado pelo cheiro de fogo e poeira. Li-Ming flutuou até onde eu estava e pousou, ajoelhando-se perto de mim.

— Você acha que eu não aprendi suas lições, mas eu aprendi. Aprendi a lição da morte de Isendra. Mas eu recebi meu poder por um motivo, e é meu fardo usá-lo. E vou usá-lo, não vou ter medo dele como você.

— E se você não conseguir controlá-lo? — Minha voz saiu num sussurro rouco. — Com seu poder, você pode destruir o mundo.

— Então que o mundo chore. — Li-Ming virou as costas para mim. — Há algo que preciso perguntar, Mestre.

Fiquei quieto, pois sabia o que viria em seguida. Não havia mais nada que Li-Ming pudesse aprender comigo.

— Por que Isendra morreu? Me diga a verdade.

— Eu sei apenas o que você já sabe.

Li-Ming assentiu com a cabeça e começou a levitar.

Abri a boca para falar novamente, mas as sombras engolfaram tudo.

Quando acordei, dias depois, Li-Ming havia abandonado a cidade, e ninguém sabia para onde ela tinha ido. Disseram-me que era impossível esconder o acontecido, pois a coluna de fumaça que se ergueu do Santuário foi vista por toda Caldeum, e do lado de fora era possível perceber as marcas da batalha nas pedras destruídas e rachadas.

Aqui termina meu conhecimento acerca da história da arcanista, e minha decisão me aguarda. Quando os magos ameaçaram destruir nosso mundo, um mestre Vizjerei fundou a ordem dos assassinos, os caçadores de magos, que garantiriam que jamais ficaríamos tão poderosos a ponto de ameaçar o mundo. Ele se postou aqui em meu lugar, e falou com o primeiro assassino assim como eu agora estou falando com você, e assim ele condenou muitos grandes magos à morte.

Quanto a mim... Esta será a segunda vez que eu faço isso.

Acredito que ela sabia que fui eu quem enviou você para vigiar Isendra... e apesar disso... ela me deixou viver, sabendo que assim como eu selara o destino de Isendra, eu faria o mesmo com ela.

Saiba, no entanto, que Li-Ming não mentiu. Há livros em nossa biblioteca que descrevem os eventos que podem estar acontecendo neste exato instante. Tudo começa com uma estrela caindo dos céus, e uma estrela caiu no dia em que eu lutei contra Li-Ming.

Conheço a verdadeira natureza da magia, e de quem e do que eu sou. Li-Ming também sabe disso, mas escolheu outro caminho. Esse é o quebra-cabeças diante de nós, assassino. Eu sei do mal que nos espreita, mas temo o que Li-Ming possa tentar fazer. Assim, condeno à morte minha aluna mais brilhante, talvez a maior esperança de salvação do mundo, e rezo para que eu tenha tomado a decisão certa.

Ainda me lembro de uma menina que ficou diante de mim aqui nesta sala, sem temer nada. Lembro de uma jovem altruísta que queria fazer o bem, para quem tarefa nenhuma era pesada demais, para quem nada era impossível. Uma jovem que me procurou em busca de orientação.

Ela fez a escolha dela, e eu fiz a minha.